O incrível caso do aeroporto de Berlim

Como manchar a reputação da eficiência alemã

Marcos Sandrini
19 min readMay 14, 2018

Artigo escrito como um resumo de quatro episódios especiais do programa de rádio do programa da rádio RBB chamado Radio Spätkauf, com alguns detalhes extras de fontes locais e da Wikipedia.

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Quando passageiros voam de ou para Berlim, na Alemanha, geralmente por companhias locais ou de baixo custo como a RyanAir ou EasyJet, toma-se o rumo do aeroporto de Schönefeld, neste que é o antigo aeroporto que servia à parte oriental de Berlim nos tempos do muro. Pequeno e com alguns terminais visivelmente improvisados, partindo-se dele se vê no horizonte uma construção próxima repleta de vidros, imponente e bela, mas que traz vergonha aos habitantes desta cidade rica em história: o notório aeroporto de Berlim-Brandenburgo (BER).

Aeroporto BER — Foto de Peter Kuley

A história do aeroporto começa um pouco antes da queda do muro de Berlim, onde planejava-se, de modo muito típico aos precavidos alemães, que a cidade seria objeto de crescimento acelerado após a queda do muro e portanto, os aeroportos da cidade não seriam suficientes para suprir a demanda futura — o outro aeroporto da cidade, o Tegel (lê-se tíguel), que servia a Berlim ocidental durante a guerra fria, não parece tão acanhado e improvisado quanto Schönefeld, mas é pequeno e está sobrecarregado há bastante tempo.

Parte I: problemas de requisitos

O projeto iniciou-se com o levantamento de suas requisições básicas, como de costume, mas os problemas começaram já nesse ponto, bem antes de qualquer construção: o aeroporto teve em seus requisitos a condição de ser um hub, ou seja, um aeroporto que fosse não somente um destino final mas uma parada intermediária entre outras rotas. O aeroporto ser ou não um hub é crucial pois significa, necessariamente, mudanças grandes em seu projeto e no seu orçamento. Pois bem, a única companhia que poderia usar desse status para o aeroporto de Berlim, pelo seu tamanho, seria a Lufthansa, a maior companhia aérea da Alemanha, mas ela já tinha dois hubs, Frankfurt e Munique, sem interesse por um terceiro.

Outro problema anterior ao início das obras foi o local do aeroporto: nas proximidades de Berlim há um aeroporto militar (Sperenberg) abandonado desde a época da queda do muro, que fora usado para testes e vôos restritos pelos nazistas e depois pelos soviéticos. Esse aeroporto era a escolha óbvia, por ter pistas já construídas previamente, não ter residentes por perto, além de ter um potencial de expansão imenso. Num relatório da época do projeto, 7 localidades haviam sido levantadas como locais em potencial para o aeroporto (em ordem do melhor para o pior local possível), e este local foi apontado como o melhor. Curiosamente, o pior dos 7 locais da lista, uma área na cidade de Schönefeld, próxima do aeroporto já existente, foi o local escolhido. Essa área foi o pior local segundo a pesquisa citada por ter, entre outros fatores, residentes muito próximos do aeroporto, um potencial estrangulamento da capacidade de crescimento da cidade próxima (que não teria mais lugar para expandir-se) e uma área disponível mínima no aeroporto em si (que obrigou inclusive as pistas a ficarem muito próximas entre si).

Schönefeld foi escolhida como sede do aeroporto apenas por uma disputa política: a cidade de Berlim (que tem status de estado) está encrustada no estado de Brandenburgo, como uma pequena ilha-metrópole numa grande área menos povoada. Para quase todos os locais pesquisados (inclusive Sperenberg), o governo de Berlim não poderia beneficiar-se fiscalmente dos empregos gerados pelo aeroporto, mas Schönefeld era o único local que se encontrava na borda entre os dois estados, permitindo isso. Os dois estados divergiram então quanto ao local desejado (Brandenburgo queria Sperenberg) e, ao arbitrar um desempate, o governo federal alemão decidiu pelo local preferido de Berlim, pois este encarregaria em menos custos para a construção de rotas de acesso, o que sairia do orçamento federal, ignorando os relatórios sobre locais e também o aviso das companhias aéreas, que alertaram sobre o local não permitir a construção de um hub.

Parte II: FBB

Uma empresa pública para a construção do aeroporto, a FBB (na época chamada BBF), formada pelos governos da cidade-estado de Berlim, o estado de Brandenburgo e o governo federal alemão, tinha a tarefa de organizar esse enorme projeto. Com o local decidido em 1996, além de uma pequena vila ter sido inteiramente removida para a construção do aeroporto, muitos moradores de Schönefeld entraram com uma ação coletiva na justiça local. A ação não foi bem-sucedida em tirar o futuro aeroporto de lá, mas a justiça proibiu vôos no futuro aeroporto entre meia-noite e 5 horas da manhã, o que frustrou já nessa fase boa parte dos planos iniciais de se fazer um aeroporto com funcionamento durante 24 horas. Não somente isso, mas a justiça também obrigou à empresa FBB a isolar acusticamente 14 mil casas na região, o que resultou no primeiro grande custo imprevisto da empresa (730 milhões de euros).

Adicionalmente, a FBB também gastou somas exorbitantes de dinheiro para comprar terras (118 hectares no total) que seriam usadas no aeroporto e em seu entorno, a um preço incompatível com uma época em que terras eram baratas porque estavam disponíveis em profusão após a guerra fria tanto em Berlim oriental como em Brandenburgo, ambos locais com estrutura abaixo do nível de Berlim ocidental e do resto da Alemanha. Não somente isso, mas também foram compradas terras em direções onde o aeroporto estava longe de ir, e também todas as terras foram compradas sem autorização de nenhum dos governos que compunham os acionistas da FBB. Denúncias davam conta de que atravessadores compravam por um preço baixo as terras na área divulgada que seria usada pelo aeroporto pois sabiam que a FBB pagaria qualquer preço por estas terras, e então as vendiam à empresa, de fato por muito mais.

Desde os anos 1990, o padrão em grandes construções públicas alemãs era que a operação do projeto ficasse a cargo da empresa pública e a construção fosse entregue a uma empresa privada. Uma licitação foi feita e, de dois consórcios candidatos, um foi escolhido (Hochtief), mas o veredito foi julgado ilegal em uma ação movida pelo outro consórcio (IVG) por haverem pontos ilegais na disputa que beneficiariam a vencedora. Após isso, os dois consórcios apresentaram uma proposta conjunta e foram escolhidos como fornecedores dos serviços de construção. Se tudo desse certo, o aeroporto estaria pronto em cerca de 4 anos, como aconteceu com outro aeroporto construído pela Hochtief, o de Atenas, na Grécia.

Parte III: corte de custos, a um alto custo

Klaus Wowereit, prefeito de Berlim na época, ficou mundialmente famoso pela frase “Berlim é pobre, mas sexy” e localmente famoso por muitas políticas polêmicas, muitas elas de corte de custos. Com essa mesma intenção, e incomodado com as garantias de lucro exigidas pelos grupos encarregados de construir o novo aeroporto, Wowereit se juntou ao governador de Brandenburgo, do seu partido SPD, e decidiram em conjunto quebrar o acordo de privatização da construção do aeroporto em Maio de 2003, para que a própria FBB se aventurasse na construção do aeroporto.

O arquiteto berlinense superstar Meinhard von Gerkan foi contratado para o projeto do aeroporto. Gerkan havia feito, entre muitos projetos grandes, o aeroporto Tegel em 1965, após ganhar aos 30 anos um concurso público para este projeto. Este aeroporto é notável pelo seu desenho hexagonal que faz os passageiros andarem menos até os balcões e, principalmente, até os embarques. É notável em Tegel a falta de espaços para lojas, que reflete a postura pessoal de Gerkan quanto a esse assunto, refletida em uma passagem de seu livro onde ele reclama da “cacofonia” de aeroportos onde o usuário tem que navegar por corredores de lojas antes de chegar ao seu destino. No novo aeroporto, ele seguiu esta crença pessoal ao dedicar pouquíssimo espaço a lojas, fato que foi incrivelmente negligenciado até quando a construção do aeroporto já tinha se iniciado.

Em 2007 a construção iria começar, a para isso a FBB iria contratar uma empresa, que seria responsável pela construção, num âmbito mais prático. Num movimento atípico, disseram o quanto esperavam gastar com a construção (630 milhões de euros), e quatro empresas (incluindo a Hochtief) ofereceram seus serviços, todas por pouco mais de um bilhão de euros. As empresas foram acusadas de conluio para aumentar o preço artificialmente, alegações que nunca foram provadas, mas que influenciaram a decisão por vir: o projeto seria então dividido em seções menores, e cada uma delas seria entregue a uma empresa diferente. Consultores foram contratados e deram uma notícia ruim para a FBB: 6 das 7 das seções iriam custar de 55% a 175% mais do que o previsto, o que elevaria o custo previsto de 630 milhões pretendidos para 1,1 bilhão de euros, mais do que o orçamento previsto pelas quatro empresas concorrentes do processo anterior. A esses consultores contratados foram solicitadas mais opções a fim de se diminuir o custo do projeto, e eles deram à FBB três opções:

  • Contratar as empresas que se dispuseram a construir o projeto e arcar com esse novo custo;
  • Contratar novas empresas, o que poderia ou não ser ligeiramente mais econômico;
  • Subdividir ainda mais o projeto, desta vez em 35 partes, e assim economizar 65 milhões de euros, embora atrasando o projeto por até 18 meses.

A última opção foi escolhida. O projeto foi subdividido entre 35 empresas, cada uma responsável por uma parte bem específica do projeto: paisagismo, estruturas, tubulação, alarmes, telecomunicações, janelas, sistemas de bagagens, etc. Com a responsabilidade ambiciosa de se coordenar esses 35 times, a FBB contratou Rainer Schwarz, previamente envolvido com gerenciamento de aeroportos em vários lugares da Alemanha, especialmente em Düsseldorf.

A construção se iniciou. No início apenas algumas empresas puderam trabalhar no projeto devido à falta de especificações detalhadas, dado que o projeto do arquiteto Gerkan ainda não estava totalmente finalizado. Assim, os túneis de trem e estradas foram os primeiros a serem iniciados. De fato, ao contrário do aeroporto as linhas de trem e os acessos foram finalizados em 2011 como previsto no projeto inicial, mas hoje os trens vazios fazem duas viagens diárias a partir do aeroporto de Schönefeld, apenas para que as linhas e os túneis permaneçam em uso, para que não juntem mofo.

Parte IV: grandiosidade, até nas mudanças

Em 2008, o aeroporto tinha mais de nove meses de trabalhos de construção, embora a maior parte dos trabalhos até então estivesse sendo feita nos acessos. No entanto, nesta época foi descoberto um problema de grandes proporções: por uma falha de requisitos, o aeroporto já seria inaugurado desde o início operando com a capacidade máxima. Então, neste ponto, a FBB divulgou novo projeto para aumentar a capacidade do aeroporto, de 220 mil m² para 360 mil m². As mudanças eram tão grandes que uma nova permissão de funcionamento teria que ser emitida. O preço saltou para 2,2 bilhões de euros, mas a data de lançamento permaneceu a mesma (outubro de 2011). Outras mudanças foram solicitadas nesta mesma época:

  • Mais áreas de loja, o que fez com que o fluxo do aeroporto inteiro fosse mudado e tivesse que ser reprojetado. Algo que a FBB havia solicitado por puro temor financeiro;
  • Dois portões foram reprojetados para acomodar acessos aos dois andares do novo mega-avião A380, apesar de nenhuma empresa aérea (especialmente a Lufthansa) acenar com a possibilidade de usar esses aviões no novo aeroporto — o que não faria, de qualquer maneira, sentido econômico para um aeroporto que não iria ser um hub;
  • Dois novos anexos com portões extras sem acesso por túneis (walking gates) foram adicionados ao projeto para acomodar as companhias aéreas de baixo custo, negligenciadas no projeto original. Além disso, uma área específica foi construída para a Air Berlin, que abriria falência em 2017, em grande parte por causa dos desmembramentos da crise do próprio aeroporto;
  • Novas normas de segurança foram estabelecidas na Europa para 2010, ainda como uma consequência tardia dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Apesar das normas estarem sendo estudadas há anos, quando sua obrigatoriedade foi sinalizada, várias partes do aeroporto foram remodeladas de última hora em consequência disso.

Entre 2008 e 2009, foram 487 mudanças solicitadas ao arquiteto Gerken. Em 2010 a FBB decretou que mudanças não seriam mais aceitas, mas elas continuavam vindo, mesmo de dentro da FBB e de políticos. Muitas mudanças que eram solicitadas demandavam que se derrubassem paredes já construídas e estruturas já instaladas.

Em Junho 2010, os trabalhadores celebram a finalização da construção do saguão principal do aeroporto, uma sala que, segundo dizem, englobaria o Estádio Olímpico de Berlim. A torre de controle também foi finalizada. O otimismo toma conta dos organizadores, mas o cenário ainda mostra o que seria na época chamado de “a maior construção da Europa”. Esse estado de otimismo é quebrado pelo anúncio de um atraso nas obras, que seriam completadas em junho de 2012, ao invés de outubro de 2011. Ainda assim, todos permanecem confiantes e mesmo entre políticos opositores e na imprensa o atraso é visto como normal e aceitável em uma obra tão grande e impactante.

Rainer Schwarz, responsável máximo da obra, reportava para uma comissão das autoridades políticas que compunham a FBB. Os políticos desta comissão frequentemente não se davam o trabalho de ler os relatórios sobre o andamento dos trabalhos e as minutas das reuniões eram estranhamente vagas (depois foi dito que muitos dados nessas minutas eram apagados pois eram julgados como confidenciais). Ao público, os políticos diziam que tudo sempre estava bem, a caminho de uma inauguração sem problemas.

Parte V: às portas do lançamento… ou não

Em Junho de 2012, o aeroporto Berlin-Brandenburg (BER) começou a aparecer com destino nas plataformas de marcação de passagens e sua inauguração parecia inevitável. 12 mil voluntários se ofereceram para os testes finais do aeroporto, que envolviam treinamentos de segurança nas checagens individuais e situações corriqueiras simuladas. Muitas dessas pessoas notavam o pobre estado de acabamento do aeroporto, como se fosse uma obra ainda no meio. Uma companhia independente contratada para verificar o resultado dos testes internamente fez um alerta não divulgado ao público, em março de 2012, sobre o estado inseguro e não finalizado da estrutura, que ainda não seria o suficiente para a inauguração. Outro relatório apontou que o aeroporto estaria 56,2% pronto em abril deste mesmo ano e que apenas 26 dos 102 portões estariam prontos para uso.

Algo estava errado, e apesar de isso ter sido constatado pelos muitos voluntários participantes dos treinamentos e atestado pelas auditorias internas, pouco era divulgado sobre o andamento da obra. Passou despercebida a criação de uma força-tarefa interna contra problemas no sistema anti-incêndio que fora estabelecida, o que seria indício de que algo não estava bem nesse setor. A pauta principal dos políticos e da alta-gerência do projeto na última reunião antes da inauguração, no entanto, tinha como assunto a suntuosa festa de lançamento, para a qual 10 mil vips e 30 mil cidadãos comuns seriam convidados e para a qual a chanceler Angela Merkel chegaria de jatinho descendo na pista do novo aeroporto, adentrando o terminal em um tapete vermelho. Como uma pauta secundária, o problema dos alarmes de incêndio fora citado como algo pontual e prontamente solucionável através do que foi chamado de “automação parcial” do sistema de detecção de fogo, que demandaria uma verba emergencial de 13,9 milhões de euros logo aprovada para isso.

No dia 2 de junho, os aeroportos Tegel e Schönefeld seriam fechados e todas as operações em Berlim seriam transferidas para o novo aeroporto. Era uma operação logística complexa: as estradas seriam fechadas e 600 caminhões levariam todos os equipamentos de Tegel para o novo aeroporto. Muitos itens secundários já haviam sido transferidos previamente. Redes de rádio e televisão preparavam coberturas nunca vistas da inauguração, incluindo um especial de 24 horas ininterruptas de cobertura do evento numa rede de TV local. Às 5:30 do dia 3 de junho, dois aviões (uma da Lufthansa e um da Air Berlin) decolariam ao mesmo tempo das duas pistas para sinalizar a abertura das decolagens. Muitas pessoas já tinham em suas passagens o destino ou partida marcado para o novo “BER”.

Parte VI: incêndio de fatos

A despeito da felicidade geral do público em torno do novo aeroporto e às portas da festa de lançamento, no dia 8 de maio de 2012, Schwarz veio a público anunciar o cancelamento da inauguração que seria dali a 26 dias, citando dificuldades técnicas, principalmente no sistema anti-incêndio. A inauguração nova seria em março de 2013. A curiosa estória desse cancelamento se desenhou com a recusa de uma só pessoa a assinar a permissão de funcionamento do aeroporto. Stephan Loge era uma das várias pessoas encarregadas de assinar essas diferentes permissões, mas se recusou a fazê-lo ao ver o quão peculiar era o sistema anti-fogo.

O projeto original do aeroporto previa, no caso de fogo, ventiladores no chão sugando a fumaça para chaminés fora do aeroporto, o que incorre num problema de física, dado que o ar quente nunca desce, só sobe. Isso demandou um sistema cuja complexidade fez com que fosse considerado um dos maiores sistemas desse tipo do mundo, e que fosse apelidado de “monstro” pelos trabalhadores do local e, mesmo com vários motores de imensa força bruta, nunca funcionou em um patamar aceitável. Outro problema era que o sistema previa o fechamento automático de todas as 3.400 portas anti-fogo no caso de algo detectado, mas isso simplesmente não funcionou nos testes. A “solução” prevista para isso foi criativa até, mas pouco confiável e muito pouco germânica (suavizada pela alcunha supracitada de “automação parcial” ou ainda “interface homem-máquina”): pessoas nas portas de incêndio com telefones celulares que detectariam sinais de incêndio e se comunicariam em caso de quaisquer problemas. Se não fosse pelo improvável veto de Stephan Loge, isso teria sido posto em prática e o aeroporto, mesmo com outros problemas, teria sido aberto.

Quanto a esses outros problemas, eles eram muitos. Na pressa de se abrir o aeroporto, erros óbvios como escadas rolantes curtas demais (com prolongamentos improvisados) eram vistos, mas muitos outros problemas menos óbvios também estavam ali. No total, cerca de 150.000 pontos falhos foram catalogados por um relatório pedido logo após a inauguração fracassada. Entre coisas mais e menos importantes, algumas falhas se destacam: problemas de cabeamento (a chamada “salada de cabos”) surgiram da constante mudança dos designs quando o aeroporto já estava sendo construído, aliado ao fato de que o projeto de arquitetura esteticamente limpo previa pouco espaço para reorganização dos cabos. Nisso, cabos de força (que esquentam muito) e cabos de comunicação de alerta dividiam um espaço mínimo, aliando um potencial grande de fogo e explosões na via dos cabos a um possível curto de comunicação que faria com que nenhuma ajuda fosse chamada nesse caso. Uma consequência desse problema é que 6 mil km de cabos tiveram que ser reposicionados e novas alterações foram feitas no projeto.

O sistema anti-incêndio foi redesenhado e um novo sistema de ventiladores gigantes (cada um com 4 mil kg) foi instalado no teto da monstruosa sala principal do aeroporto. O teto do aeroporto não havia sido projetado para suportar tal peso, e assim toda a construção foi parada, por precaução, por um tempo, até que fossem tidas garantias de segurança. Como se não bastasse, foi descoberto que o sistema de jatos de água anti-incêndio, com 78 mil jatos, tinha uma tubulação fina demais para prover o volume de água necessário em caso de fogo para vários dos ambientes do aeroporto. Todo o sistema de tubos teve que ser trocado, e todos os jatos testados mais uma vez, individualmente. Parte do sistema anti-incêndio, havia janelas de comutação de ar que se fechavam em caso de fogo, cujo mecanismo foi descoberto falho em temperaturas acima de 30ºC, bem acima do normal de Berlim, mas bem abaixo da temperatura em um incêndio de fato.

Em meio ao caos midiático gerado pelo atraso nas obras, descobriu-se que o engenheiro responsável pelo sistema anti-incêndio, Alfredo di Mauro, não era de fato engenheiro, mas um técnico. Em sua defesa, ele disse que suas credenciais nunca foram questionadas e que ele teria denunciado falhas gravíssimas, mas que as denúncias foram ignoradas e seus relatórios foram destruídos pelos seus superiores.

Parte VII: o fracasso se estende

O projeto do aeroporto previa um salão de entrada impressionante pelo tamanho e espaço, mas também 4.500 salas, um número que foi atingido após o projeto inicial, muito pela vontade de expansão dos responsáveis pelo aeroporto. Devido a isso, a numeração das salas, importante para os bombeiros e para a própria construção, não seguia um padrão lógico. Um problema notado por todos os que iam ao aeroporto até pouco tempo era que todas as luzes do aeroporto estavam sempre acesas. A FBB disse aos jornalistas que era por questão de segurança, mas um dos engenheiros responsáveis pela obra disse que não havia razão a não ser o fato que a construção não tinha avançado o suficiente para os controles de luz individuais serem feitos, ou seja: as luzes não podiam ser desligadas.

A reputação da construção já estava manchada perante a imprensa desde a inauguração interrompida, mas alguns meses depois, quando a data de abertura de março de 2013 foi novamente estendida para outubro, se sabia da gravidade dos problemas. Os construtores que se juntavam ao projeto tinham a sensação (corroborada pelos novos projetos) de que tinham que fazer uma espécie de “reforma” de algo novo e que nunca fora usado. Um construtor ouvido pela reportagem da rádio RBB sob condição de anonimato disse que a motivação para essa “reforma” era grande, mas que assim que todos começaram a ver o quão difícil era ter soluções para problemas simples numa estrutura caótica como a estrutura de poder da FBB, a motivação foi se esvaindo e a produtividade das pessoas, baixando. Este mesmo engenheiro não quis continuar na obra após certo tempo, com medo de ter seu currículo manchado por um projeto tão problemático.

A situação de caos fazia com que trabalhadores ficassem frequentemente sem ter tarefas, mas mesmo assim as horas extras eram estimuladas, o que era aproveitado pelos mais velhos, que tinham interesse em descontar tempo para sua aposentadoria, como permite a lei alemã para as horas extras. Pior, após a abertura frustrada, os engenheiros passaram a ser contratados com um pagamento por dia trabalhado, o que num cenário como esse significava ainda mais prejuízo.

Até roubo puro e simples se fez presente: entre 2012 e 2013, segundo o jornal Bild, muitas pessoas de dentro da obra passaram a desviar e comercializar parte do imenso estoque de cobre parado que havia lá e era facilmente acessível.

Parte VIII: demitindo e atrasando

Uma empresa (PGBBI) formada basicamente pela empresa do arquiteto responsável pelo projeto mais outros arquitetos e engenheiros era a responsável por fornecer todas as plantas e detalhes técnicos do projeto arquitetônico. Era um grande time de cerca de 190 pessoas, muitos deles trabalhando no aeroporto desde o começo dos anos 2000. Essa empresa teve seu contrato rescindido na mesma reunião na qual ficou decidida a mudança da data de abertura para 2013. Isso, somado ao fato de que muitos diretores técnicos chave no projeto foram demitidos nesta mesma reunião, foi tido por alguns críticos como uma decisão que fez a obra voltar no tempo, pois seu complexo projeto, agora, teria que ser decifrado por pessoas que o desconheciam completamente. Muitos documentos foram deixados, mas ninguém que pudesse tirar dúvidas sobre estes estava mais lá. Um episódio curioso após essas decisões foi que alguns dias depois uma pessoa achou, numa lixeira em Berlim, próximo ao que fora o escritório da PGBBI, que abriu falência após esse episódio, documentos detalhados e plantas minuciosas do aeroporto. O arquiteto Meinhard von Gerkan, que foi desligado do projeto junto de sua empresa e da PGBBI, se tornou um dos maiores críticos do projeto até hoje.

Tanto o diretor técnico da obra, Manfred Körtgen, quanto Rainer Schwarz foram despedidos, mas no caso deste último a demissão veio depois de todas as outras. Ele não teria sido demitido antes, segundo relatos, porque temiam ficar sem comando na obra, mas a alegação da demissão de que ele não repassava à comissão de políticos responsáveis o andamento real da obra previa que ele fosse demitido bem antes do que foi, e por essa inconsistência ele conseguiu recorrer à justiça, que obrigou a FBB a pagar a Schwarz uma multa de pouco mais de um milhão de euros. Rainer Schwarz continuou trabalhando no ramo de aeroportos após isso.

Klaus Wowereit continuou a ser o prefeito de Berlim, mas se afastou do cargo de líder da comissão da FBB. Esta empossou como seu presidente Hartmut Mehdorn, gestor conhecido no meio empresarial alemão como eficiente e linha-dura e, que por coincidência, tendo trabalhado na Air Berlin, havia processado o próprio aeroporto após a fracassada abertura em 2012. Mehrdorn assumiu em 2013 tendo o público e a imprensa ao seu lado, mas um ano depois, insatisfeito com as condições encontradas e com a comissão da FBB também insatisfeita, acertou sua saída para o momento que encontrassem um substituto, o que ocorreu em março de 2015. Karsten Mühlenfeld, ex-presidente da Rolls Royce na Alemanha assumiu a companhia em seguida. Em 2014, Wowereit decidiu renunciar ao cargo de prefeito de Berlim, por causa dos escândalos em torno do aeroporto, agora seguidamente divulgados pela mídia.

Parte IX: corrupção!

Casos atípicos (para os alemães) de corrupção começaram a ser descobertos nos anos seguintes: Joachim Grossman, um diretor de operações da obra com certo poder de decisão, foi acusado de desviar meio milhão de euros através de pagamentos ilícitos e contratos para serviços desnecessários. Ele foi julgado e preso, além de severamente multado. A companhia de engenharia Imtech, um dos mais importantes fornecedores da obra do aeroporto, que em 2012 se encontrava em situação financeira difícil, se aproximou de um funcionário de alto escalão (chamado “Francis G.” devido a segredo de justiça) da obra a fim de ter um adiantamento de seus pagamentos e, após uma negociação em torno de quanto seria a “comissão” necessária para a liberação do dinheiro a Francis, chegou-se em 150 mil euros, o que foi pago em espécie. Algum tempo mais tarde, esse funcionário foi preso e alguns funcionários da Imtech também foram condenados por corrupção. A despeito disso, a Imtech continuou a trabalhar na obra até 2016, quando foi à falência.

Durante a onda de denúncias, um alto funcionário da obra do aeroporto foi hospitalizado em 2016, com suspeita de — pasmem! — envenenamento de seu café. Não havia suspeitos específicos, embora pouco mais de 12 pessoas tivessem acesso ao seu escritório na obra. Ele sobreviveu, mas ficou 3 meses internado.

Parte X: o presente e o futuro

Segundo o construtor ouvido pela reportagem da rádio RBB, o aeroporto, que ainda não foi inaugurado, se de fato for inaugurado um dia, nascerá datado por usar tecnologias ultrapassadas e ser construído de um jeito que não se faz mais por padrão na indústria, sendo um “novo velho” aeroporto. Um novo terminal temporário no aeroporto Schönefeld que usaria a estrutura de pistas do novo terminal foi construído, mas este também falhou em ter uma permissão de funcionamento devido a potenciais problemas com seu sistema de incêndio. Não se sabe ainda se será usado.

Hoje, o aeroporto, cujas construções iniciaram em 2008 e cujas reformas foram iniciadas em 2012, ainda não tem uma data confiável para seu início, segundo especialistas ouvidos. Relatórios mais recentes (2017) apontaram falhas persistentes no sistema anti-incêndio como um todo, assim como falhas em quase todos os outros pontos já citados aqui. A última previsão de inauguração do aeroporto é para 2020, mas recentemente mais um diretor técnico pediu demissão do projeto. O custo total da obra até aqui é 7,3 bilhões, com custos novos sempre surgindo.

Há planos para aumentar até 2040 a capacidade de passageiros do BER de 22 para 55 milhões de passageiros por ano, mas esses planos, segundo relatos na imprensa, impactam a data de lançamento do projeto para 2020, novamente por causa do sistema de incêndio.

Alguns especialistas apontam falhas fundamentais no projeto que inviabilizariam totalmente uma inauguração mesmo em 2020, e que seria mais rápido e barato diminuí-lo e investir na construção de outros aeroportos menores ou mesmo demolir toda a estrutura e iniciar novamente o projeto.

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Marcos Sandrini

Designer and front-end programmer with 20+ years of experience, also a keen observer of the world and its people